Contando o tempo
"Arte é como embelezamos o espaço, a música é como embelezamos o tempo" (Jean-Michel Basquiat)
Este ano completo trinta desde que, após assistir a um cover dos Beatles, decidi que queria aprender a tocar guitarra, juntei oitenta reais e comprei uma de segunda mão. Era ruinzinha (bem parecida com essa daqui), mas quebrou o galho enquanto eu não tinha algo melhor. Mas logo comprei também um baixo, já que todo mundo na turma tocava guitarra e alguém precisaria ir pro baixo se houvesse pretensões de se formar uma banda.
Esse, por ser bem mais decente, ficou comigo por mais de vinte anos até que eu decidi vender o dito cujo e trocar por um bem mais confortável de se tocar. Falei por alto desse momento no texto Música, coleções e TDAH, mas como ele já estava enorme, não falei de um detalhe curioso desse dia em que fui na loja de música: depois de pagar pela compra e me preparar pra sair, o lojista falou “bons estudos!”
Imagino que, como quase toda vez que eu pego um baixo, devo ter tocado The Chicken. Depois provavelmente o baixo de Closer to the Heart. Que, veja você, são músicas com linhas marcantes de baixistas que são referência no instrumento. Mas o fato é que, para o lojista, pareceu que eu era alguém que estava começando a estudar, e não alguém que tocava baixo desde 1997.
O comentário não me surpreendeu, porque desde sempre reparei nisso mesmo: eu sempre toquei muito pior que conhecidos que tocavam há tanto tempo (ou até há muito menos tempo) que eu.
Habilidade musical envolve um monte de coisas diferentes, nem todas elas mecânicas, mas entre essas há a parte técnica de se produzir sons com qualidade e uma boa noção de tempo.
A forma como representamos tempo na notação musical envolve lidar com sua multiplicação e divisão. A esmagadora maioria da música popular ocidental, por algum motivo que desconheço, envolve embelezar quatro tempos. Se você já é músico e/ou sabe do que eu estou falando pode pular essa parte do texto, se não, abra esse vídeo e veja o que esse baterista está fazendo.
Os números na tela indicam o que ele está fazendo nos quatro tempos. Se você reparar na coxa direita dele, vai ver que ela se move sempre no 1 e no 3 - é o bumbo, que faz aquele som de “tum”. A mão esquerda bate na caixa sempre no 2 e no 4 (aquele som de pá!). Já a mão direita bate duas vezes a cada número no chimbau (esse que faz um som de ts), em intervalos idênticos, isto é, a cada “metade” de tempo. Mas ele faz isso só nos primeiros compassos (esse conjunto de quatro tempos) - logo depois ele faz várias variações, porque em geral (a não ser que você seja baterista de punk rock ou produtor de música pop sem paciência pra fazer nada de muito diferente), linhas de baterias ficam mais interessantes se você fizer mais que uma sequência interminável de tum-pá-tum-pá.
Atendo-se apenas ao tempo (isso porque as coisas também costumam ficar mais interessantes se a intensidade dos sons também for variada), o primeiro nível de embelezamento é mover, remover ou adicionar esses elementos entre essas oito diferentes possibilidades. Depois, pode-se dividir cada tempo em partes menores (duas, quatro, oito) dando uma quantidade ainda maior de opções. Se quiser deixar as coisas mais diferentonas, dividir por três em vez de dois. E finalmente, dá também para não considerar apenas que tudo tem que ser feito com divisões certinhas mas pode também ser um contínuo - e se ao invés de tocar a caixa no 2 e no 4 isso for feito só um pouquinho antes do 2 e do 4? Esse tipo de coisa dá uma movimentação muito interessante às músicas e faz parte do repertório de truques de qualquer bom músico.
Esse vídeo aqui tem alguns dos meus nomes preferidos em embelezar o tempo. É o quarteto de John Coltrane tocando sua versão de My Favorite Things. O ritmo que o baterista, Elvin Jones, toca na bateria, leva às últimas consequências o que falei aí em cima. As divisões são por três, mas também são deslocadas de um jeito pouco usual, e se você tiver interesse no assunto, esse texto disseca o ritmo da música de um jeito bem interessante incluindo formas visuais de entender o que está acontecendo.
Mas eu dei toda essa volta no texto pra dizer que não deveria ser surpresa que pra conseguir chegar no nível de fazer algo tão sofisticado, é necessário fazer bem o simples. E às vezes mesmo o simples me parecia complicado.
Esses dias peguei aquele meu baixo, fui tocar umas coisa bobinhas e vi que além de não soarem bem, o tempo estava péssimo. Aí acabei encontrando um artigo científico detectando que entre as coisas que mais são capazes de prever se alguém tem TDAH está a capacidade de sincronização sonora. O teste é simples: coloca-se um ritmo de uma nota só para tocar, e se pede pra pessoa bater o dedo no mesmo ritmo, primeiro com ele ainda tocando, e depois interrompendo o som, pra ver se ela é capaz de continuar mantendo o mesmo ritmo assim mesmo. Os indivíduos com TDAH tinham a tendência de produzir intervalos menores (em termos musicais, seria aquele baterista que acelera quando não devia) e uma menor precisão entre cada batida.
Claro que não dá pra colocar toda a culpa em uma coisa só, ainda mais algo tão simples. Mas foi algo que me fez pensar, porque a cegueira temporal para outras coisas (dificuldades para prever quanto tempo tarefas vão durar, perder a noção do tempo em atividades diversas, etc) é algo também muito típico no TDAH. Será que o melhor caminho mesmo é o de “músico teórico” e escrever cada instrumento para ser tocado por outros? Ah é, tem um nome pra isso, chamam de “compositor”.
Se talvez eu seja melhor embelezando o tempo na forma escrita (e deixando sua execução pra quem faz isso melhor que eu), pelo menos dá pra eu escrever sobre o tempo. Há seis anos um amigo resolveu editar um livro sobre o tempo visto por diferentes ângulos. Entrou em contato com gente de várias áreas diferentes (da física, da biologia, da filosofia, da sociologia, e também um sujeito com uma formação meio esquisita - no caso eu) e pediu que escrevêssemos um capítulo cada. Teve de tudo - texto sobre o conceito de reversibilidade na física, sobre a passagem do tempo para os animais, e até um sobre como a viagem no tempo foi retratada pela ficção científica. E um texto meu sobre o tempo para uma molécula biológica. Demorou horrores pra publicar, mas vou aproveitar esse espaço pra fazer uma propaganda descarada do nosso O Tempo em Perspectivas, que acaba de sair pela Editora UnB. O preço de lançamento ficou meio caro, mas o livro tem mais de 600 páginas (e fazendo cadastro como estudante ou professor tem 40% de desconto!).
Voltando dos nossos comerciais, mais alguns comentários sobre o tempo que teriam a ver com música e fórmula 1, pra tentar manter a coerência com o título da newsletter:
Sabe aquilo que falei sobre contar o tempo em música para antecipação? Bom, vale pra qualquer coisa que envolva intervalos fixos, então não era incomum, na Fórmula 1 até os anos 90, que alguns pilotos resolvessem largar como músicos.
Se um bom músico consegue contar tempos com precisão para saber quando vai tocar uma nota, um piloto podia também contar os intervalos entre as luzes na hora da largada e já pisar no acelerador exatamente na hora certa. Mas alguém que não simpatizava com pilotos “músicos” (Jean Alesi era um exemplo disso, e costumava fazer largadas muito eficientes) e hoje a última luz se apaga após um intervalo aleatório, que pode durar até alguns segundos, pra prevenir os pilotos de fazerem isso. Cambada de chatos.
Já na era dos motores turbo dos anos 80, antecipar-se ao tempo não era nem só vantagem, era uma necessidade. É que, por causa da forma como esses motores funcionavam, o aumento de potência não acontecia na hora em que se pisava no acelerador, mas uns dois segundos depois. Bom, dois segundos em fórmula 1 são uma eternidade, então se um piloto esperasse sair de uma curva pra pisar no acelerador, já estaria perdendo um absurdo de tempo - então tinha que entrar numa curva e já pisar no acelerador calculando mais ou menos quando é que o turbo ia bater. E torcer pra não ser antes, né, já que um coice desses no meio duma curva é a receita para o desastre.
Há algo similar para alguns tecladistas, embora sem grandes riscos de acidentes: um dos teclados que eu mais amo é o Mellotron, criado na Inglaterra nos anos 60 e rapidamente adotado por muita gente - está por exemplo em Strawberry Fields Forever dos Beatles. A ideia desse teclado era reproduzir o som de outros instrumentos usando fitas de áudio (sim, como as fitas cassete). Quando se apertava uma tecla, a fita era movida para um cabeçote que a lia, e a retornava pra posição inicial. Então era necessária uma certa antecipação para entrar no tempo, e também não tocar a mesma nota por mais de oito segundos, que era a duração das gravações nas fitas, e ainda por cima cada vez que se soltava uma tecla havia o tempo da fita correspondente ser rebobinada.
Era um instrumento trabalhoso de se manter, complicado de controlar, difícil de afinar - o guitarrista Robert Fripp, da banda King Crimson, que criou uma sonoridade própria (mas copiada a exaustão) envolvendo harmonias com mellotrons e bateristas que vão às últimas consequências na hora de embelezar o tempo, cunhou a frase “tuning a Mellotron doesn’t”.
Capa do disco In The Court of the Crimson King, em que praticamente se inventou um gênero. Pra uma overdose de mellotron, escute Epitaph.
Talvez se imaginasse que esse instrumento tão temperamental estaria fadado ao esquecimento com o advento dos teclados modernos que reproduzem instrumentos e vozes com muita mais fidelidade que fitas gravadas, mas que nada, é um instrumento atemporal. Está não só nas dezenas de bandas que imitam o King Crimson, mas até no pop contemporâneo - como em I am not a robot ou Obsessions da Marina Diamandis, ou em Angel Down, daquela moça que fez um show em Copacabana relativamente bem sucedido (e que acabou de lançar um disco bem bom, não sei se ficaram sabendo).
Um abraço e até outro tempo!
Livro adicionado na minha lista de leitura ☑️😁
Que texto massa, aprendi muitos conceitos!! Entendo muito pouco de teoria musical xD
Não sou capaz de opinar sobre sua habilidade com o tempo, mas posso dizer que o ritmo dos seus textos é muito bom!
Achei curiosa a colocação do vendedor do baixo, porque eu tive outra interpretação... pra mim soa mais como um elogio, pois é característica de mestres da arte continuarem estudando pra aprimorar suas habilidades. Sempre há algo novo para aprender, testar, experimentar... ser aprendiz é estar em movimento 🙃