Música, coleções e TDAH
Descobrindo uma condição e realizando um plano de vinte anos (escrito originalmente em 2022)
Na minha última viagem a Fortaleza, meu pai pediu que eu desse uma olhada em uma estante de meu antigo quarto e decidir o que ainda tinha utilidade e o que poderia ser jogado fora. Já são quase vinte anos desde que saí de casa, e a maioria das coisas estava lá há muito mais tempo que isso, e, portanto, a tarefa teve que ser feita usando máscaras – o que não tem sido grande dificuldade atualmente.
Fomos bem-sucedidos – imagino que no processo nos livramos de uns dez a vinte quilos de entulho. Algumas coisas trouxe pra cá, como uma coleção de selos e uma de dinheiro antigo. A primeira foi um hobby que levei até relativamente a sério lá pelo início dos anos 90 – tanto é que além de uma quantidade enorme deles havia também certificados de cursos de filatelia (o mais recente datado de 1993), e alguns guias de identificação de selos antigos. Já o dinheiro antigo foi consequência das mudanças de moedas até minha adolescência, de cédulas antigas que ganhei do meu avô e de dinheiro estrangeiro que ganhava dos parentes que foram ao exterior.
Até aí nada muito anormal, mas houve uma época em que eu gostava da ideia de ter uma coleção de coleções. Uma com dezenas de bolas de gude, uma de pilhas (sim, pilhas, e a decisão para iniciar essa coleção foi quando um brinquedo veio com uma pilha de 9 volts com o símbolo do Batman – era a época em que ele voltou a fazer sucesso com o filme do Tim Burton), uma de tampas de garrafa (afinal, depois de uma viagem a Ipu onde tomamos uma garrafa de Guaraná Wolga, por que não juntar tampas de todo tipo de refrigerante diferente?), de figurinhas, e provavelmente outras de que não me lembro.
(aparentemente ele ainda existe, só não com esse rótulo)
Livrei-me da coleção de pilhas quando uma delas começou a vazar (afinal, é isso que pilhas velhas fazem), da de tampas provavelmente quando começaram a enferrujar. Já mais tarde comecei a colecionar livros e discos, e esses interesses tenho até hoje. O meu interesse por música é tão velho quanto consigo me lembrar, e em 1995 resolvi que queria aprender a tocar guitarra. E alguns anos depois descobri o mundo dos sequenciadores para PC. Sequenciadores são dispositivos para criação de música – houve um tempo em que existiam equipamentos com essa função, alguns teclados também eram capazes de fazer isso, mas a coisa popularizou mesmo quando eles ficaram disponíveis na forma de softwares, onde o usuário poderia escrever músicas com quantos instrumentos quisesse.
Esse trambolho aí servia pra isso
A forma mais comum de se fazer isso era ligando um teclado ao computador, tocando a parte de cada instrumento, e já no computador definir se aquela melodia deveria ser atribuída a um piano, uma guitarra, um baixo, etc. Outra opção, bem mais trabalhosa, era a de fazer tudo manualmente, com o mouse mesmo – sair clicando onde ficava cada uma das notas de cada instrumento, o que, como você já deve ter imaginado, era um trabalho desgraçado.
Que era o que eu fazia, já que eu não tocava teclado (minha versão do final dos anos 90 e começo dos 2000 tinha empolgação o suficiente para fazer esse tipo de coisa), Acho que uma das primeiras músicas completas que fiz assim foi Let it Be, dos Beatles.
Mas às vezes eu também tinha ideias. Uma melodia vinha à cabeça e eu registrava aquilo no sequenciador, pra talvez usar em outro momento. Às vezes os arquivos eram só isso mesmo – alguns segundos de uma ideia pra uma música – em outros eram músicas quase completas. Por conta da inexistência desses serviços de armazenamento de nuvem, backups que davam errado e HDs que queimavam, perdi quase todos esses arquivos, e por isso a humanidade escapou de ouvir A Pedra Azul, uma composição para orquestra e coral que certamente não faria com que Beethoven aparecesse para mim em sonho me encorajar, como aparentemente acontece com outros músicos contemporâneos.
Eu tocava em duas bandas na época, uma só de covers e uma que também tinha suas próprias músicas, e uma vez mandei esses arquivos pra essa segunda banda. Num ensaio, o baterista perguntou “ah, como era mesmo aquele arquivo curtinho que você mandou?” (era um desses com uma frase musical de alguns segundos), mas o curioso é que eu mesmo não sabia decorado as próprias coisas que registrava, e do que lembrava saiu algo que era mistura daquilo que eu realmente tinha escrito e com uma banda setentista francesa que escutava muito à época chamada Gong.
(inclusive recomendo)
Eles gostaram, ficamos lá brincando com o trecho, o guitarrista achou uma forma curiosa de conectar as frases, subindo uma escala que não era a do tom da música, mas que soava bem assim mesmo. De volta pra casa, pensei em que outras coisas poderia fazer para continuar. Naquela época, eu fazia um curso de extensão em música muito bom na UFC, mas como tantas outras coisas, eu não o terminei, porque achei que não daria conta de fazer minha graduação ao mesmo tempo em que fazia um curso que me tomava todas as noites. Meio que o mesmo motivo pelo qual não continuei a estudar alemão depois de um semestre e não passar muito do Ich möchte ein Kartoffelsalat.
Mas o pouco de teoria musical que eu sabia à época foi o suficiente para eu ouvir falar dos ciclos de quartas e ciclos de quintas, em que acordes seguidos separados por esses intervalos soavam bem apesar de não se encaixarem em um tom. Nessa época eu tinha uma obsessão por Giant Steps, do John Coltrane – e colecionei também versões diferentes dessa música, coisa de mais de quarenta. Resolvi então que a “parte B” da música seria um ciclo desses. Só que eu obviamente não era um John Coltrane, então não fazia ideia de como encaixar a sequência de acordes de forma que a volta ao tema original fizesse sentido. O que foi feito na tentativa e erro – montei um ciclo de quartas de forma que caísse num ré maior e em seguida ia para um ré menor (o que eu sabia que era possível graças à minha larga experiência ouvindo bregas e a Aqualung do Jethro Tull), que era o tom original da música e voilà, tudo resolvido.
Faltava só a parte final, que fiz de forma nada sofisticada (uma cadência simples de quatro acordes descendentes), por um motivo simples: serviria para eu poder improvisar solos. Afinal, fazer isso em cima de uma harmonia baseada em um ciclo de quartas estava muito acima da minha capacidade (a melodia que escrevi para aquela parte foi em cima de muita tentativa e erro, também), mas solar em cima de ré menor, dó, si bemol e lá era algo que até um zé mané como eu conseguiria fazer. Toquei essa música várias vezes com essa banda, e foi numa delas que fiz o que talvez tenha sido o melhor solo da minha vida (não há registro nenhum disso e talvez seja melhor assim, pois provavelmente a memória seja superior ao que de fato ocorreu).
Nessa época, após abandonar um curso de engenharia elétrica para começar um de computação eu descobri que minha paixão acadêmica na verdade era a Física e a Cristalografia – e aí pensava em nomear uma banda de “espalhamento incoerente”, escrevi um prog-metal chamado “O Método Rietveld”, e na hora de nomear essa música que descrevi aí em cima, o nome escolhido foi “A Catástrofe do Ultravioleta”.
Pra quem não conhece, a "catástrofe do ultravioleta" é como se chama o fracasso retumbante da física conhecida até o século XIX em explicar o espectro de luz emitido por um corpo que absorvesse todas as cores. O problema só foi resolvido ao se abandonar alguns conceitos fundamentais da física clássica (e considerar outros que, à época, pareciam bizarros). Ela pode ser apontada como uma das principais motivações para o surgimento da mecânica quântica - que depois comprovou que as considerações "bizarras" usadas para resolver o problema não eram só artifícios matemáticos e existiam mesmo (fonte: Darth Kule, Wikimedia Commons).
Foi justamente por causa da Física e da Cristalografia que me mudei para São Carlos: apaixonado por cristalografia e não sendo físico, tive que procurar por programas de pós-graduação que aceitassem pessoas com outra graduação. E em relação à música, como as duas bandas ficaram para trás,o que eu fazia era transformar as músicas “feitas com mouse” em áudio para os instrumentos que eu não tocava, e em seguida gravar, um de cada vez, aqueles que eu tocava. Nessa época cheguei a fazer, dessa forma artesanal e em qualidade abaixo da crítica, a Catástrofe já com todas as partes. Com a esperança de que um dia ela fosse gravada direito, com todos os instrumentos de verdade, em boa qualidade.
O que não parecia muito provável, já que eu tocava cada vez menos. Ainda mais quando me mudei para Belo Horizonte. Um dia uma escola de música abriu aqui perto de casa, e eu pensei em voltar a estudar. Escolhi o baixo, que apesar de ser o instrumento que eu tocava na banda de covers e na maioria das músicas da banda de material próprio, eu nunca havia estudado formalmente. As aulas iam bem, até que aparentemente houve um desentendimento entre o dono da escola e o professor, que foi substituído. Era um sujeito muito bom também, mas aí ele se mudou pro exterior e veio um terceiro – esse bem problemático, que vivia faltando as aulas sem sequer avisar. Claro que eu não era cobrado por isso e essas aulas eram repostas, mas uma hora eu me cansei e tive uma outra ideia – e se eu simplesmente mudasse para a bateria?
E foi assim que fui de alguém que tocava guitarra, baixo e violão em diferentes graus de incompetência para alguém que passou a mais ou menos tocar também bateria. Cujos professores também não duravam muito tempo – foram quatro no período que passei por lá – e quando acabei saindo mantive contato com um deles, muito novo, que estava iniciando a faculdade de musica na UFMG, mas que já era um bocado talentoso. Sair da escola de música significou voltar a tocar cada vez menos, até que, já durante a pandemia, os membros da minha antiga banda de covers tiveram a ideia de gravar remotamente. Cada um gravaria seu instrumento individualmente, e um dos guitarristas faria a mixagem.
Empolguei com a ideia e troquei de baixo, comprei uma interface de áudio para gravar e... tudo que se seguiu depois foi desastroso. Em relação ao processo de gravação em si, absolutamente tudo dava errado – programas não funcionavam direito, a interface não funcionava a contento, quando um problema era resolvido outro diferente aparecia. Não sei se os softwares musicais ficaram mais complicados em relação aos de vinte anos atrás, se eu fiz uma má escolha na hora de comprar a interface de áudio (em época de dólar pela hora da morte, comprei a que teoricamente tinha bom custo-benefício, e não a que era a mais recomendada), ou se eu já não tinha a mesma disposição de quebrar a cabeça para fazer essas coisas funcionarem como no início dos anos 2000.
Mas talvez isso nem fosse o pior. O grande problema era ver que eu simplesmente não conseguia tocar minimamente bem. A diferença na execução entre os outros e eu era um abismo. Se isso já era o caso na época em que tocávamos toda semana, vinte anos depois a situação era a de três pessoas tocando muito bem (os outros membros da banda nunca pararam) e uma quarta cujas gravações não se aproveitavam para absolutamente nada.
Refletir sobre isso me fez desabar completamente e questionar coisas que nem tinham a ver com música – perceber que durante esses anos todos eu havia acumulado dezenas de interesses sem me tornar realmente bom em nenhum deles. Nem em física, nem em computação, nem em filatelia, nem em numismática, nem em bioquímica, além claro de guitarra, baixo, violão ou bateria. Resolvi vender boa parte dos equipamentos de música que acumulei nesses vinte e cinco anos, porque só olhar pra eles já me fazia meio mal.
Mas não era só em relação à música que as coisas não iam muito bem. Eu comecei a perceber o mesmo em relação ao trabalho. Durante minha vida inteira tive altos e baixos no que demandava concentração. Havia professores na minha época de colégio que nem sabiam direito como lidar comigo, porque num ano eu tirava notas excelentes, no seguinte mal conseguia passar. Quando passei no vestibular pela primeira vez minhas notas só não dariam pra entrar em medicina (felizmente esse nunca foi um interesse meu - a ideia de abrir gente não me parece agradável), mas já no primeiro ano reprovei uma disciplina.
Desisti de uma graduação, e de repente entrei na seguinte com notas tão altas que dessa vez serviriam para entrarem qualquer curso. E aí novamente voltava a ter dificuldades com as disciplinas da nova graduação. Minha forma de lidar com isso foi me conformar que eu era assim mesmo e que em alguns dias eu teria capacidade de concentração boa o suficiente para estudar ou produzir algo intelectualmente, e em outros não iria conseguir fazer nada. Como consegui seguir em frente, ficou por isso mesmo.
Até que ano passado percebi que eu não conseguia mais me lembrar qual havia sido o último dia em que consegui ser produtivo. Felizmente há tarefas no meu trabalho que não precisam de grande concentração (como corrigir provas), ou que já fiz tantas outras vezes que mesmo em dias de “pouca inspiração” consigo fazer bem (como dar aula), mas tudo aquilo que era novo e precisava de concentração e esforço intelectual, como escrever artigos, estava praticamente parado há um bom tempo. Resolvi procurar um psiquiatra.
(Charles Schulz)
Devo ter descrito quase tudo que falei aqui e algumas outras coisas, e o diagnóstico foi de TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade). E de repente, isso tudo passou a fazer sentido. TDAH não é apenas “ter pouca atenção”, mas uma dificuldade de controlar a atenção para algo específico, o que significa inclusive que em alguns momentos pode haver excessos em áreas diferentes (como quando eu escrevia uma música inteira nota por nota usando um mouse, ou quando eu ficava tão concentrado em resolver uma estrutura de proteína por cristalografia que fazia em um ou dois dias o que muita gente levava uma semana), ou que ela se divida em uma infinidade de coisas.
Ter uma quantidade enorme de interesses diferentes, aliás, é uma característica comum de quem tem TDAH. Inclui-se também uma noção ruim do tempo, dificuldade com organização, problemas de sono, esquecimentos, entre outras coisas - quase todas que eu tive ao longo da vida e nem imaginava que estavam relacionadas. Nem tudo é desvantagem no cérebro de quem tem TDAH (aliás,em muitos casos as alterações são visíveis em exames por imagem) – essa tendência de acumular quantidade grande de interesses ajuda a conectar áreas muito distintas, o que certamente foi útil nas tantas vezes em que fiz trabalhos que envolvem simultaneamente biologia, física e computação.
(às vezes essa coisa de conectar áreas distintas vai um pouco longe demais)
As dificuldades, porém, podem ser bastante problemáticas, ainda mais para quem só descobre isso muito tarde. Felizmente, existem diversos tratamentos (farmacológicos ou não), e desde que descobri isso tenho conseguido lidar melhor com a situação. Há algum tempo escrevi uma newsletter chamada “Projetos” que, lendo agora, parece ser uma descrição muito comum de quem tem TDAH, embora na época eu nem fizesse ideia disso. Ela falava sobre essa tendência de iniciar uma enorme quantidade de projetos e terminar bem poucos deles. Contei que, dos maiores fora da área acadêmica, eu gostaria de um dia ter uma música gravada,um livro publicado e um jogo de tabuleiro lançado, e todos os três estavam num limbo por já terem sido iniciados e nunca completados.
Mas essa reflexão toda após o retumbante fracasso com as gravações me deu uma outra ideia: e se eu usasse o dinheiro das coisas que vendi pra contratar músicos pra gravar aquela música que compus vinte anos atrás? Lembram daquele professor de bateria com quem eu mantinha contato? Pois perguntei pra ele. E ele conversou com o pessoal da banda dele, e eles toparam. E foi assim que, vinte anos depois, A Catástrofe do Ultravioleta finalmente se tornou realidade. Com o Estevan Barbosa na bateria, Daniel Souza na guitarra, Nathan Morais no baixo, e Jackson Ganga nos saxofones. Pra quem usa Spotify dá pra ouvir aqui, se não dá pra ouvir no YouTube mesmo, aqui.
Demorou bem mais que eu gostaria, mas foi. Já dá pra pensar em terminar aquele livro e aquele jogo de tabuleiro.
Lucas, me identifiquei demais com seu relato! também já comecei e abandonei vários projetos na minha vida, desde aprender a andar de patins, e também aulas de alemão, até a carreira de cientista hahahaha. É tão bom quando a gente encontra um nome para que nos aflige a vida inteira, né? Fico feliz que você tenha conseguido diagnóstico, e gravado a sua música; e fico na torcida para que o seu livro e seu jogo se tornem realidade! E se tem uma coisa que você passa muuuito longe de ser medíocre, é na carreira de professor! Certamente foi um dos melhores profissionais com quem já trabalhei :)